sexta-feira, 5 de dezembro de 2008


Que amor sem paixão poderia resistir? Que homem ou mulher consegue disfarçar a sua natureza? Seria apenas uma opção? Como poderia ele optar por algo que nunca soube que existira. Gostar de pessoas do mesmo sexo ia ao encontro dos seus desejos mais íntimos, mas de forma alguma queria que estes se fizessem transparecer para o exterior. Qualquer sinal seria o seu fim. Era provavelmente anormal, anormal ao ponto de não servir para nada, nem para fazer um filho, com gosto. A possibilidade de ser feliz era demasiado macabra, essa possibilidade não existia. Estava condenado e não sabia porquê.


A fuga foi concretizada, estavam com medo do que poderiam encontrar, estavam com muito medo, na realidade. A Cidade tinha mais de 8 milhões de habitantes. A diversidade cultural era tal que ao início parecia-lhes tudo demasiado confuso. Havia necessidade de começarem a trabalhar, havia necessidade de encontrarem um local para descansarem, para dormirem. O dinheiro que haviam levado com eles não era nada mais do que duas ou três rendas correspondente à pior das casas. Era necessário encontrar urgentemente um trabalho. Precisavam de dinheiro. Arranjaram um local para poderem ficar. Um quarto, um quarto de banho e uma pequena cozinha. O espaço era demasiado pequeno para uma pessoa e sufocante para duas. Joana encontrara inicialmente uma pequena ocupação: lavava cabeças e varria os cabelos cortados de um salão de beleza de luxo no centro da cidade. Ele trabalhou num restaurante, onde ajudava na cozinha.
Ao mesmo tempo que iam conseguindo sobreviver, iam-se conhecendo melhor.
Gostava muito de Joana, e viver com ela poderia ser a coisa mais bonita do mundo, como a coisa mais egoísta. Ele sabia que mais tarde ou mais cedo lhe havia de contar, não daria para esconder durante muito tempo. Há medida que o tempo ia passando o amor transformara-se num outro tipo de amor, num amor embaciado, sem carnalidade daquele quando nos referimos aos nossos pais, aos nossos irmãos. Era a pessoa ideal para confiar, para brincar e talvez até casar, mas não era de todo a sua fonte de prazer animal perfeita, precisava de uma outra fragrância, talvez aquela que permanecia adormecida e insistia em ficar sob uma forma tão disfarçada como desprezivelmente verdadeira e cada vez mais insinuante.

Foi aos 20 que conseguiu fugir de casa, e para lá nunca mais voltar. Até hoje, recorda toda a sua infância tentando lembrar-se apenas das coisas que o marcaram pela positiva, mas era difícil.
Joana era uma das coisas boas que recordara, mas não a suficiente para esquecer tudo o resto. Os amigos, os primos com quem conviveu, alguns tios e tias, mais nada. O resto foi frustrações de uma criança sem carinho e retaguarda por parte do seu pai e da sua mãe.
Na adolescência, descobre a sua homossexualidade, apesar de a admitir bem mais tarde. Era diferente, ele sabia-o, mas não o quanto e de que forma.
Nessa altura, lembra-se perfeitamente das conversas que tinha com os seus colegas. Aos 19 já todos tinham experimentado a doce sensação do primeiro contacto sexual. As raparigas faziam parte das conversas e dos sonhos secretos de todos, menos dos dele.
O amor de Joana por ele existira desde cedo, e por ele fugiu também, deixando para trás a sua terra e os seus pais. Não poderia deixá-lo fugir sozinho. Não poderia viver sem ele.
Delinearam tudo. A hora, a forma como se deslocaram e até mesmo para que local. O sul do país fora o escolhido. O mar atraía-os tal como muita gente. A cidade era a maior do país e sua capital.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008




Falaram sobre quase tudo. Falaram nela, nele, nos outros, nos próximos, nos mais afastados, nos que já não viam há muito e nos que nunca mais poderão vir a ver. Finalmente e depois de jantaram, começaram a falar neles. O assunto era o menos apetecido naquele momento para ele, mas para ela, era o momento de que há tanto tempo esperava. O momento certo havia chegado, não poderia deixar fugir a oportunidade. Dirigiu o seu olhar na direcção dele, começou por proferir algumas palavras que iam saindo, ao princípio meio confusas, mas depois foram tomando o seu equilíbrio natural, fazendo passar assim, toda a sua convulsão de sensações.
Arrastou a sua mão até à dele, apertou-a com um pouco de força e insistiu em perguntar-lhe porque lhe fez aquilo. Começou a chorar. Já sabia a resposta. Ele olhou-a nos olhos e disse-lhe que já lhe havia explicado, na altura não sabia muito bem a forma, mas acredita que a vida lhe tenha ensinado a viver com aquela realidade.
Ele viveu durante a sua infância numa pequena cidade do interior. Ratury, era uma cidade pequena em todos os aspectos. Desde cedo que ele sentira que não pertencera ali. Algo estava errado e ele sentia-o desde sempre. Os anos foram passando e ele foi crescendo. Cresceu rodeado de terra, e do ar. Cresceu rodeado da mediocridade e da ignorância, assistiu e foi vítima de maus tratos, machismo e outras coisas mais. Viveu assim, durante muito tempo. Joana era uma bela rapariga, uma das mais belas da pequena cidade. Com ela criou laços de ternura, amor e amizade. Joana ficou gravada na memória dele como sendo uma das poucas coisas boas que lhe haviam acontecido em Ratury. Aos 18, fugiu de casa. Tentou fugir de tudo e de todos, mas desta vez sem sucesso. Não foi muito mais longe do que a cidade mais próxima. A fome assolou-lhe a mente e deixou-o completamente vencido. A insegurança foi outra das causas. Nesse dia, em vez de uma conversa que poderia ter tido com os pais, esta foi substituída por uns açoites até perder os sentidos, falecido de fome e cansaço. Mais tarde, tentou o suicídio, atirando-se de uma ponte, a única da pequena cidade. Não era o suficientemente alta. A solução seria tentar desta vez, uma fuga. Para sempre.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008


Depois de ter saído do café, foi andando sem rumo. Aproveitou para reflectir e descobrir a cidade que lhe abria agora os braços e lhe dava o ar da sua graça. Um ar frio, um ar que o convidava ao aconchego da sua casa e o obrigava a considerar a existência de um cobertor na sua cama para se manter mais quente.
A chuva tinha parado. Mesmo assim, os telhados ainda escorriam o excesso de água para os passeios, depois, umas pequenas gotas até ficarem completamente secos. Tirou a gabardina quando entrara para uma discoteca. Olhou para uns quantos cds e adquiriu uns 6 ou7.
A cidade parecia-lhe simpática. Faltava agora a companhia de alguém.
Mais à frente uma livraria. Depois um outro café e um outro. Uma igreja, um parque de merendas e acolá, uma avenida, que descia até ao rio. Desceu, e caminhou pela margem até sua casa.

O homem alto e arranjado perguntava-lhe como queria o corte de cabelo, e se a barba também era para desfazer. Acenou afirmativamente e pediu um corte simples mas curto. O cabeleireiro ficava mesmo ali, ao pé de sua casa. O corte era lento mas eficaz, enquanto isso, olhava-se no espelho vendo a sua imagem ser modificada e depois rectificada em pormenor pelo profissional. Uma ligeira massagem com um pouco de creme after shave e estava como novo. Sentia-se fresco e sem dúvida muito leve. Mas agora, a sua imagem parecia outra. O homem que conhecera há bem pouco atrás estava mais novo e limpo.
Deixou os cds em cima da mesa, dirigiu-se à cozinha e trocou um copo de uísque por um de sumo de laranja bem fresco.
Sentou-se numa cadeira e colocou um dos cds que havia comprado, tinha sido um sucesso no ano anterior, mas que lhe escapara devido à sua decadência.
Leu novamente as cartas que recebera e confirmou a morada. Seria o momento certo para falar com alguém que conhecera há muito tempo? Ou seria uma má opção ir ao encontro de Juliana?
Abriu a gaveta onde colocara as cartas recebidas e depois de ter confirmado a morada saiu, saiu decidido a ir ter com Juliana.
A morada dela era bem perto da sua. Caminhou a pé e num instante estava ao pé da casa procurada.
Respirou bem fundo, fixou a campainha e apertou com toda a sua força para que não pudesse voltar atrás.

Voltar atrás e correr até sua casa não fazia sentido, aguardou a resposta excitado, impaciente. A resposta não demorou a ser dada. Era ela, a Juliana!
Foi convidado a entrar, um beijo e imediatamente um abraço que levou algum tempo a ser desfeito. Poucas foram as palavras proferidas pelos dois.
Como era incómodo estar ali. Sentia-se completamente nu. Sentia-se demasiado envergonhado.

Ela contara-lhe muitas coisas sobre a sua vida. Os tempos fantásticos que passou enquanto emigrada em Londres, as aventuras, os namorados e as desilusões que foi encontrando pelo caminho.
Ele, sobre os seus receios, sobre também a sua perda e a sua derrota perante a vida, falhou-lhe nas descobertas, nas novas pessoas e nos novos mundos. Falou-lhe nas sensações e emoções que esta vida lhe havia proporcionado.

terça-feira, 26 de agosto de 2008



Ratury sempre foi um local verdejante, apesar de gélido. A casa onde morava tinha no lugar das portas umas cortinas que faziam a separação entre os pequenos compartimentos da casa. Ainda se lembra exactamente do cheiro a humidade que os cobertores desferiam e do barulho provocado pelo estilhaçar dos paus de madeira verde enquanto se transformavam em cinza na lareira. Uma lareira preta, mas sempre iluminada e quente. Os potes também pretos, ferviam água durante todo o dia, água que servia para a sopa e outra para os banhos. As sopas consistentes de feijão e farinha matavam a fome a qualquer um, mesmo àqueles que se haviam matado num dia árduo de trabalho a partir lenha, a arar terra ou simplesmente a brincar.
Mas tinha sido a vinha o seu destino. Desde pequeno que aprendera a embaraçar as pontas verdes e tenras no arame e formar talhões de vinha em autênticas sebes enoveladas. Com uma guita à volta da cintura, prendia um molho de junco cortado e demolhado em água quente previamente, que utilizava para prender ao arame os preciosos ramos que ostentavam os cachos. Mais tarde esse trabalho era repetido – os primeiros ramos haviam-se reproduzido e dado outros ramos. Mas o mais intrigante era a poda. Cerca de três meses após a vindima, a videira era transformada num pequeno tronco com duas hastes. Uma em cada direcção. Em cada uma delas cerca de dois brotos e se a videira fosse forte, três.
O percurso enlameado que fazia todos os dias para a escola transformava-se no local ideal para o divertimento.

domingo, 13 de julho de 2008




E tudo num pequeno momento se transforma, são precisos anos e muitos acontecimentos para derrotar um homem, para o destronar, fazendo-o cair muitas vezes num charco de desordens, de aflições e até de maus presságios. São necessários anos e anos de luta para no fim, nada encontrar, nada alcançar. Os anos passam mas ele não gostava de regressar no tempo, a nostalgia fazia-o sempre querer voltar. O regresso ao passado era demasiado tumultuoso, demasiado penoso e custoso para o querer relembrar.
A carta recebida fazia algum sentido, a vida era a dele sem dúvida. Estava ansioso por devorar a segunda e a terceira carta.

Hoje acordei um pouco confusa, não sei o que faça, estou deveras indecisa, às vezes parece que temos que decidir qualquer coisa, nem que seja muito importante, ou haja grande necessidade. Mas a evolução normal da vida obriga-me a tomar decisões. Esperei demasiado tempo até te encontrar, não penses que nada fiz durante estes anos todos, também vivi uma vida com sensações, aliás, repleta de sensações, e aquela que mais perdurou foi a sensação de saber que te havia de encontrar um dia e poder abraçar-te, dizendo-te nos olhos o quanto esperei por este momento. Estou a enviar-te esta carta para que te certifiques da minha existência, com tudo, não quero agora, provocar-te mau estar.
Um beijo de saudades.
Juliana.

Juliana era a rapariga mais bonita de Ratury, era encantadora, e inteligente. As poucas coisas que soube sobre ela, depois que saiu da cidade, foi que esteve emigrada e nunca mais voltou até então.
A terceira e última carta era apenas uma morada, a morada de Juliana.

Prometo que não te volto a estorvar, se não o quiseres, deixa-me apenas deixar-te a minha morada. Se quiseres, aparece!
Juliana

A morada de Juliana estava ali. Pelo que parece não era muito longe da casa dele, e ir até lá era provavelmente muito boa ideia. Precisava de encontrar alguém com quem falar, alguém que o ouvisse e pudesse também partilhar algumas coisas com ele, mágoas, desencantos, momentos tristes e momentos felizes. Não importava o quê, apenas falar com alguém.
Mas reencontrar Juliana, poderia não ser agradável, muito menos depois do que havia acontecido, do que lhe havia feito. Provavelmente seria o momento certo para lhe pedir desculpa.
Nessa manhã saiu com uma expectativa completamente diferente sobre o mundo e a vida, o ar cheirava a terra molhada, e a relva molhada estava outra vez verde. A chuva era uma coisa fantástica. Regressou para trás para calçar umas botas e vestir uma gabardina, o fim do verão estava agora a ser anunciado, tal como o fim de um ciclo, que ele esperava estar a mudar para melhor.
A chuva tornou-se mais intensa, batia com energia no chão formando salpicos, rodopios. O caudal da água, um pouco mais abaixo, formava uma espécie de remoinho, enquanto se esgotava num escoadouro, mesmo em frente ao café onde iria entrar para tomar uma bebida quente.
As pessoas iam comentando que estava frio e que o verão havia acabado. Bebiam leite, café e chocolate quente, enquanto vislumbravam a fúria progressiva da chuva que estava a gritar vitória e anunciava a chegada do Outono. Deixou-se estar a ouvir umas quantas músicas naquele café, "My little town" fazia-o pensar em Ratury e inevitavelmente no Simon e no Garfunkel.

terça-feira, 1 de julho de 2008



Os pequenos favores eram sempre em troca de algum dinheiro, havia quem gostasse de dar mais alguma coisa.
Tinha herdado o ar envergonhado do seu pai, e a beleza da sua mãe. Cabelo claro, olhos esverdeados, um homem alto e altamente perigoso, no que tocava ao seu charme.
Só acordou quando uma vez mais a campainha o acordou, desta vez, o carteiro riu-se para ele, como se soubesse que as cartas entregues lhe provocavam algum mistério e curiosidade. Aceitou a carta, olhou com atenção para ela e verificou que era da mesma pessoa. A caligrafia era igual.
Foi buscar as outras cartas que as havia posto na noite anterior numa pequena gaveta, onde guardara algumas fotos e incenso. Sentou-se e leu o resto da primeira carta:

(…) Desculpa estar a dizer-te isto desta forma tão cobarde, deveria dirigir-me a ti e falar contigo olhos nos olhos, de forma a não restarem nunca mais dúvidas sobre o que aconteceu. (…)

A carta ainda não fazia qualquer sentido para ele, as perguntas de sempre continuavam a assolá-lo, mas quem seria?
Continuou a ler a carta e depois a outra e a outra até se fazer luz…

Sei que te mudaste há muito, também sei que nunca mais foste a Ratury. Falei com alguns familiares teus e disseram-me que nunca mais deste notícias. O que se passa? Ainda não te passou? Maldita seja a morte, a sério que sinto muito. Não merecias. Quando soube fiquei muito triste, a sério que fiquei.
Bom, não vamos falar de coisas tristes. Gostava de poder tomar um café contigo e ver-te, poder abraçar-te e sentir o teu rosto nas minhas mãos.
Com amor.
Até breve.

sábado, 21 de junho de 2008





Os espirros eram provocados pelo excesso de pó que tirara das prateleiras, mas a vontade era demasiado animadora para parar por ali. A tarde toda fora dedicada à limpeza, e a noite para ligar a televisão, decorar as paredes com os quadros que ele próprio pintou, e perder-se na nostalgia que as fotografias e a música que lhe haviam trazido. Como era bom animar-se com qualquer coisa. O certo, é que ele já não pensava mais em coisa alguma, apenas no seu conforto. Naquele momento sentia que ter a casa agradável era o essencial para se sentir bem, e talvez recomeçar uma nova vida, quem sabe…
Ia abrindo ao longo da noite as caixas, onde guardara tudo o pouco ou quase nada de uma grande história de vida. A sua!
Finalmente, encontrou o que já se havia esquecido de procurar, “The Queen is Dead” , um cd que lhe fora oferecido por um outro pequeno favor. Colocou o cd, e repousou no sofá, cansado e esgotado.

sexta-feira, 20 de junho de 2008



A vida tem destas coisas e para ele, isto não o surpreendia de todo. Não conseguia afastar o pensamento das cartas que tinha recebido. Enquanto se secava, reparava que a sua cara apresentava um péssimo aspecto, as olheiras sobressaíam da cara um pouco enrugada e sem cuidados, o cabelo forte mas liso, tinha agora umas pontas espigadas que reluziam ainda mais do que os cabelos brancos, há muito que precisava de um corte para o endireitar. Os 36 anos pareciam pesar, e o aspecto desmazelado era o resultado de uma vida cheia de despropósitos e concupiscências que lhe abrilhantavam o momento mas que o enfraqueciam lentamente, pouco a pouco, devagar.
A carta que recebera nessa manhã deixou-o um pouco indignado. Para quem tinha sido escrito as cartas? Quem seria o felizardo que amava e era amado? Alguém tinha acabado um relacionamento? Qual a razão? Todas estas perguntas permaneceram durante todo o dia na cabeça dele.
Vestiu-se, preparou um café bem forte e ao passar para a cozinha reparou que na entrada ainda haviam vestígios da sua mudança de casa. Desde que se mudara que não tinha alinhado as tralhas, pendurado os quadros, ligado a televisão, nem organizado um único vinil na prateleira. A casa precisava de uma limpeza antes de começar a arrumar toda a tralha, pensava.
A vida agora tinha um gosto diferente, para além do hálito a tabaco e álcool, a mente parece que se havia curado, talvez do sol ou da carta que tinha recebido.
Estar parado não fazia sentido, a casa precisava de estar limpa para poder organizar e arrumar tudo. Aproveitou a saída para o almoço para fazer compras para casa inclusive produtos de limpeza. A casa era tão engraçada, tinha encontrado a casa dos seus sonhos, pequena, com uma varanda na sala e uma cozinha com tudo o que era preciso, e para completar a boa escolha, a localização que era magnífica, tudo o que ele sonhou, uma casa com uma varanda virada para o mar. Há 3 meses que se havia mudado, estava à espera de quê? Pensou.
O restaurante era bem perto de casa, pequeno mas com bom gosto. O almoço foi feito com direito a música, quando menos esperava a música tocou. "There is a light that never goes out", fazia-se ouvir em todos os cantos do pequeno restaurante, como era bonita esta música. Lembrou-se que o vinil dos Smiths deveria estar algures misturado na confusão. O alento tornou-se óbvio, e a vontade ainda mais evidente. A casa tinha que ser asseada!
O supermercado também era próximo, adquiriu alguma comida e os produtos de limpeza, estava determinado a dar um rumo e um novo cheiro à sua vida. A sua casa ficava numa zona central da cidade, a varanda virada para o mar, disponibilizava a melhor das sensações para ele. Sempre gostou do mar, de alfândegas, navios e do cheiro a peixe. Aquela varanda seria o local ideal para amar alguém.

segunda-feira, 7 de abril de 2008



Cambaleando chegou a casa. Meteu a mão num bolso e depois no outro e tirou as chaves. Abriu a porta de acesso ao edifício e, de seguida, a de acesso à entrada de sua casa. A entrada estava obstruída por caixotes de papelão e outros de madeira, uns cheios de livros e outros de discos de vinil, por ordem alfabética. Mais à frente alguns jornais com notícias importantes, recortes de revistas e, até mesmo, fotografias tiradas pela polaroid que lhe havia sido dada em troca de um favor, um pequeno favor. Em frente, a sala, matizada de beatas e salpicada de cinza, velas, alguns paus de incenso desfeitos, livros espalhados, copos, alguns partidos e 10 ou 12 garrafas de uísque tristemente vazias.
Encheu mais um copo, lentamente foi bebendo e olhando em redor, estava perdido, naquele momento parece ter-se esquecido da razão pela qual veio com pressa até casa. Tinha a sensação que se estava a esquecer de algo, mas não sabia muito bem de quê…
Colocou o vinil na engenhoca sonora e tudo naquele momento se havia transformado, a vida com música sabia de outra maneira, mesmo que esta não tivesse agora muito sentido. Ouviu talvez as primeiras 3 mas antes de chegar à última faixa já dormia bêbedo e esgotado.
Ainda meio ébrio acordou no meio da sala. Aprumou-se, e acendeu um cigarro, os olhos
semicerrados, estranhavam a luz do sol que ingressara agora na sala e denunciava a imundice em seu redor. A campainha tocara e rasgava naquele momento todo o silêncio que se fazia sentir. Levantou-se, verificou pelo monóculo que era o carteiro e mais uma carta lhe fora entregue. A segunda!

De rompante, correu em direcção à mesa, pegou na carta esquecida no dia anterior e comparou a caligrafia com a agora entregue pelo carteiro. Eram iguais, era a mesma pessoa.
O envelope foi rasgado vorazmente, procurou os óculos, acendeu mais um cigarro e sentou-se no sofá.

A vida só nos dará a devida recompensa, se o amor que lhe dedicarmos for suficientemente forte. Mas, a tua dedicação sempre foi demasiado generosa e forte meu amor, sempre te opusestes aos demais em troca do teu amor. Salvaguardaste a nossa estranha forma de amor como se de um segredo mortal se tratasse.
Não te julgo por isso, nem te falo sequer nos momentos em que me deixaste só, apenas que fosses capaz de me dizer na cara. Mas isso não tem importância, o amor que sinto por ti supera isso e muito mais.
Ainda hoje penso como estarás, preocupo-me com o teu bem-estar e choro desalmadamente a tua ausência. Ainda te amo, e sei que me amas também, consigo senti-lo (…).


Se haviam coisas estranhas, esta carta era de certo uma delas, não conseguia entender a quem pertencia a carta, quem lhe havia escrito? Qual o amor que ele salvaguardou como se de um segredo mortal se tratasse?
A carta não era decerto para ele, bastou-lhe ler aquela primeira parte para se aperceber que não era o destinatário, não podia, não fazia sentido de todo.
Largou a carta aberta e a outra fazendo-as cair no chão. Dirigiu-se à casa de banho e tomou banho na esperança de que este o regenerasse.

quarta-feira, 26 de março de 2008



Aprendeu muita coisa na cidade onde nasceu. Foi lá que passou os melhores e os piores momentos da sua vida…Talvez regressar lá, mesmo que em pensamento, não fosse uma boa ideia. A sua vida estava virada do avesso, e ingressar agora numa viagem por caminhos sinuosos não seria a melhor das ideias… Já havia muito que tinha arrumado as malas do passado. Malas enormes, antigas, carregadas de recordações de uma vida… no entanto, não as tinha trancado, o seu passado era o seu porto seguro, era a certeza que em tempos as coisas tinham fluido bem, e os contratempos não passavam de pequenas curvas no caminho. Agora, cada novo contratempo assemelhava-se a um obstáculo intransponível, e mesmo olhando por cima desse obstáculo não havia nenhum caminho à vista por onde pudesse seguir.
Não se lembrava da altura em que tinha entrado neste caminho … o álcool tornou-se um aliado na luta pelo esquecimento, mas um inimigo na procura de soluções.
A sua vida estava completamente vazia: já não tinha contacto com os seus amigos, não se lembrava da última vez que tinha visto a família e já nem colegas de trabalho tinha. A solidão tinha tomado conta do seu quotidiano. O emprego perdido foi o início da decadência. Já nem se lembrava do que tinha corrido mal, não sabia onde tinha falhado, só sabia que tinha deitado fora uma vida.
Quando voltou a si a noite já tinha caído por completo pela cidade. A luz dos raios de sol, tinha sido substituída pelos candeeiros espalhados pela cidade, fazendo com que esta ganhasse um novo colorido. As luzes espalhadas reflectiam coisas diferentes das que se viam durante o dia, nada era igual quando caía a noite.
Pagou a conta e seguiu o caminho de casa. Voltava para o seu refúgio onde não tinha ninguém à sua espera…Enquanto caminhava lembrou-se da estranha carta que tinha recebido pela manhã. Sem saber porquê acelerou o passo, de repente tinha uma enorme pressa em chegar a casa.

quarta-feira, 19 de março de 2008



Passou os olhos pelas páginas já usadas do jornal, leu com atenção as notícias com mais notoriedade e deixou para trás as outras. Sempre o mesmo e pelas mesmas razões. Pediu outra bebida, e outra até se aperceber que a agitação da rua se havia esvaecido. O sol gritava a sua derrota, mas antes da sua morte, e depois de ter pago, levantou-se. Foi descendo a rua. Pensou como era cáustica a vida de quem se sujeitava a levantar-se sempre à mesma hora, fazer quase sempre as mesmas coisas, no mesmo local. Os estabelecimentos comercias iam-se agora fechando, mulheres e homens fechavam a sete chaves as suas portas, fechavam a sete chaves os locais responsáveis pelo seu sustento e dos seus filhos. O trabalho só fazia sentido quando era feito com gosto, e se se levantar à mesma hora e trocar produtos por dinheiro os faziam felizes, porque não? Mas a cidade, essa, não parava, não fechava portas nem as abria, deixava que quem nela vivesse pudesse ter a liberdade de escolher, pudesse fazer dela o que quisesse. A cidade, era uma espécie de suporte que abraçava a vida que cada um escolhia.

Logo em frente um pobre desgraçado. Deitado no chão, mendigava uns trocos para se poder alimentar. Uma estranha alma do lado oposto, pedindo pelo mesmo motivo, e acolá um outro a dormir, ou morto numa escada... O fim da rua anunciava o seu fim, o rio já se avistava com todo o seu fulgor. Sentou-se numa das muitas esplanadas que se estendiam junto ao rio e, pedindo outra bebida, deixou-se vitimar pelas recordações da sua infância.

Nas pálidas manhãs de Inverno, Ratury, parecia ainda mais distante e sumida na imensidão do acaso, onde ninguém se lembra de ir, nem que fosse só pelas lindas cascatas que dispunha para todos. Era uma cidade tão fria, que regelava o espírito de quem lá passasse. As casas eram geralmente espaçadas e de adornos únicos e originais, abraçadas por logradouros imponentes e bem trabalhados. Mais longe, e já fora dos limites dos edifícios, os quintais granjeados com cuidado e com alento, eram responsáveis pelos comentários mais sórdidos ou pelos comentários mais felizes. Aquele que tivesse as melhores colheitas, segundo alguns, era aquele que teria então dado mais de si à quintarola. Deus ajudava quem se esforçasse, Deus ajudava quem melhor se dedicasse ao trabalho. Enquanto dava outro gole na sua bebida, contemplava agora um grupo de pessoas que se deslocavam sem pressas, devagar, iam percorrendo a calçada junto ao rio, uns de mãos dadas, outros abraçados. Todos falavam entre si, eram amigos e estavam felizes, iam na direcção certa, iam, sem dúvida... Quando pediu a sua segunda bebida, voltou novamente a Ratury, voltou novamente à cidade onde aprendeu a ler e a escrever, voltou à cidade que o ensinou que, nem sempre, quem nos acolhe durante a nossa ingenuidade, nos abre os braços quando mais precisamos.


Ao olhar para o envelope vieram-lhe à memória pensamentos anteriores:- “Será que o destino existe mesmo, e acabou de me escrever? Será que neste envelope está o próximo capítulo da minha vida?”A sucessão de desgraças que agora pautavam a sua existência fez com que este pensamento fosse ganhando forma e força.Continuava a segurar o envelope sem conseguir decidir o que fazer com ele, era uma luta entre o medo e a curiosidade. A letra tinha um cunho feminino, seria uma fã a reclamar do seu repentino desaparecimento da vida activa?Serviu-se de mais uma bebida e começou a pensar nos pensamentos ridículos que acabara de ter. Nunca fora pessoa de acreditar numa existência predestinada e menos ainda, num destino que usava os correios para enviar as cenas do próximo episódio. Pousou um copo, pegou no casaco e saiu de casa decidido a aproveitar o que restava da manhã, deixando o envelope esquecido em cima da mesa. A agitação das ruas, as correrias e a pressa de estar a horas no emprego, contrastavam com a calma em que se transformara a sua vida. Comprou o jornal e sentou-se numa esplanada a aproveitar o calor dos últimos dias de verão e a reflectir no rumo que teria que dar à sua vida.


E tudo parecia ter acabado. Uma espécie de nuvem assolava-lhe a mente inquieta, uma nuvem de sofrimento, de mau estar, de solidão e de outras coisas horrendas que o faziam tremer de devaneio e de cólera. O fim era evidente. O refúgio tornara-se um local especial, um local onde as ásperas manhãs cheiravam ao mesmo que as noites, sem vida, sem alma, sem espírito nem corpo...A vida sem sentido apresentava-se agora de mãos dadas com líquidos que faziam arder por dentro, a bebida, era o refúgio mais confortante para ele, era o antídoto mais eficaz para apagar as mágoas mais profundas. E por momentos era bom, era tão bom poder sentir leveza no corpo e perceber que havia reencontrado o seu espírito, o amor tem fragrâncias diferentes, mas a maior parte são sempre más! Deus sabia que era o final, um final absurdo sem contrapartidas nem absolutismos, ele tinha noção do final que o esperava, de tal forma que o medo ia ganhando terreno e queimava-lhe as entranhas que faziam as correspondências lógicas entre a aceitação, o equilíbrio e a razoabilidade. Se acreditasse no destino, poder-se-ia dizer que já estava escrito em algum local o terrível e temível fim, mas não, ele não existia, e se ele não existe quem poderá escrever o nosso livro? Nós? Ainda não eram 10 da manhã, quando ele ouve alguém tocar à campainha, numa espécie de ansiedade dirige-se à porta, e uma carta é-lhe entregue pelo carteiro. O remetente era inexistente, apenas o nome dele, a preto com letras redondas.