quarta-feira, 19 de março de 2008



Passou os olhos pelas páginas já usadas do jornal, leu com atenção as notícias com mais notoriedade e deixou para trás as outras. Sempre o mesmo e pelas mesmas razões. Pediu outra bebida, e outra até se aperceber que a agitação da rua se havia esvaecido. O sol gritava a sua derrota, mas antes da sua morte, e depois de ter pago, levantou-se. Foi descendo a rua. Pensou como era cáustica a vida de quem se sujeitava a levantar-se sempre à mesma hora, fazer quase sempre as mesmas coisas, no mesmo local. Os estabelecimentos comercias iam-se agora fechando, mulheres e homens fechavam a sete chaves as suas portas, fechavam a sete chaves os locais responsáveis pelo seu sustento e dos seus filhos. O trabalho só fazia sentido quando era feito com gosto, e se se levantar à mesma hora e trocar produtos por dinheiro os faziam felizes, porque não? Mas a cidade, essa, não parava, não fechava portas nem as abria, deixava que quem nela vivesse pudesse ter a liberdade de escolher, pudesse fazer dela o que quisesse. A cidade, era uma espécie de suporte que abraçava a vida que cada um escolhia.

Logo em frente um pobre desgraçado. Deitado no chão, mendigava uns trocos para se poder alimentar. Uma estranha alma do lado oposto, pedindo pelo mesmo motivo, e acolá um outro a dormir, ou morto numa escada... O fim da rua anunciava o seu fim, o rio já se avistava com todo o seu fulgor. Sentou-se numa das muitas esplanadas que se estendiam junto ao rio e, pedindo outra bebida, deixou-se vitimar pelas recordações da sua infância.

Nas pálidas manhãs de Inverno, Ratury, parecia ainda mais distante e sumida na imensidão do acaso, onde ninguém se lembra de ir, nem que fosse só pelas lindas cascatas que dispunha para todos. Era uma cidade tão fria, que regelava o espírito de quem lá passasse. As casas eram geralmente espaçadas e de adornos únicos e originais, abraçadas por logradouros imponentes e bem trabalhados. Mais longe, e já fora dos limites dos edifícios, os quintais granjeados com cuidado e com alento, eram responsáveis pelos comentários mais sórdidos ou pelos comentários mais felizes. Aquele que tivesse as melhores colheitas, segundo alguns, era aquele que teria então dado mais de si à quintarola. Deus ajudava quem se esforçasse, Deus ajudava quem melhor se dedicasse ao trabalho. Enquanto dava outro gole na sua bebida, contemplava agora um grupo de pessoas que se deslocavam sem pressas, devagar, iam percorrendo a calçada junto ao rio, uns de mãos dadas, outros abraçados. Todos falavam entre si, eram amigos e estavam felizes, iam na direcção certa, iam, sem dúvida... Quando pediu a sua segunda bebida, voltou novamente a Ratury, voltou novamente à cidade onde aprendeu a ler e a escrever, voltou à cidade que o ensinou que, nem sempre, quem nos acolhe durante a nossa ingenuidade, nos abre os braços quando mais precisamos.

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