quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Voltaram para a mesa depois de se despedirem de todos. Ocuparam os seus lugares e entreolharam-se subtilmente. Iam abanando o copo, lentamente, fazendo rodar o restante vinho que continha. Os primeiros momentos foram os melhores. Estavam perdidos, estavam envergonhados, sem saber o que dizer, sem saber o que ouvir, o que falar. Apenas uma coisa tinham a certeza: ouviam a mesma canção e ambos sabiam que a escutavam com a mesma intensidade.
Depois, levantou a cabeça, David Também. Sorriram como se não fosse preciso falar. Ele tremia tanto, David também. Tremiam os dois entusiasmados de tanto alegria, de não saber o que iria acontecer.
O vinil chegara ao fim, “She's Lost Control” anunciava o fim de uma das partes que os Joy Division não identificaram. Ouviram muitas músicas, mas aquelas eram de cortar a respiração.
Abriram mais uma garrafa de vinho. David levantara-se para escolher um vinil. Retirou-o da prateleira e fê-lo tocar. Regressou à mesa e sorriu para ele. Ele sorriu para ele, acenando apenas positivamente com a cabeça
Havia preparado um prato especial: pato assado no forno com frutos secos e molho de manga. Para a sobremesa, uns profiteroles com gelado de nata e chocolate de leite derretido. Havia aprendido a cozinhar no restaurante onde trabalhou. Estes pratos eram fáceis de confeccionar e toda a gente iria gostar.
Todos gostaram, tal como desejara, todos conversaram, beberam e ouviram muita música. Todos gostaram uns dos outros e os outros todos de David. David havia gostado deles.
Nessa noite, ele não tirara os olhos de David, David não tirara os olhos dele. Todos saíram, todos foram andando, deixando para trás restos de vinho, restos de comida, palitos desfeitos e guardanapos de papel desfeitos em mil pedaços. Deixaram manchas de vinho e molho de manga na toalha branca. Deixaram os seus perfumes, o calor e por fim o silêncio de um jantar acabado. Deixaram também espaço para a melhor noite da sua vida. A noite em que David decidira ficar mais um pouco.
O dia havia chegado. Mais um ano em que comemorava a data do seu nascimento. Para ele, era um dia diferente de todos os outros. Era um dia especial, sem dúvida, uma razão para estar com os amigos, para estar com as pessoas de quem gostava.
Havia combinado um jantar lá em casa com o pessoal. Iria fazê-lo pela primeira vez desde que se havia mudado para aquele local. Agora a sua casa já dispunha de espaço suficiente para poder ter quem mais gostava com ele. Iriam jantar um prato especial, e beber vinho. fumariam cigarros e conversariam sobre música, sociedade e mais música. Depois, talvez vissem um filme, e se desse jogariam um jogo.
Convidou David para lá ir. Era a oportunidade da sua vida. Mostrava-lhe a casa e dava-lhe a conhecer os seus amigos.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O seu conhecimento musical fascinou-o desde cedo. Olhava-o com admiração. Era bom falante, transmitindo as suas ideias e conhecimentos sempre de uma forma subtil e encantadora. O som da sua voz foi acompanhando-o durante o dia, nas tardes, e à noite enquanto dormia. Pensava como seria convidá-lo para um café. Pensava como convidá-lo para um jantar feito em sua casa. Faria um prato bem especial, simples. Bebiam cerveja ou vinho, se gostasse. Compraria uma sobremesa no supermercado e fumariam cigarros a noite toda, enquanto falavam, enquanto descobriam a colecção musical que dispunha numas prateleiras na sala.
Pensou seriamente nisso durante muito tempo. Sonhou com o jantar durante grande parte da sua vida.
Pensava qual seria a reacção dele quando o convidasse para um jantar, como se iria explicar? Poderia dizer-lhe que gostaria de lhe mostrar a colecção, poderia até dizer que era um excelente cozinheiro e que os seus pratos eram uma obra de arte. Mas ele queria convidá-lo porque estava claramente apaixonado pelos seus encantos, pela sua pessoa. Ele iria perceber, iria fugir, iria rir-se da sua cara correndo o risco de nunca mais o ver. De o perder.
Chorou muitas noites seguidas. Amava-o mais do que tudo. Via em David aquilo que nunca encontrara em Joana, aquilo que nunca iria encontrar em mulher alguma. A Paixão. Amar David era como gritar sem que ninguém o ouvisse. Amar o David era o padecer da sua doença, era o fim de tudo. Este era o seu castigo que havia de carregar sem perceber qual a razão.
A vida continuou e a paixão pelo David também. As visitas eram agora mais frequentes, David ia à discoteca de manhã e à tarde. Ia vê-lo. Ia admirá-lo. Ele não sabia, não percebia que David também o amava.

sábado, 18 de abril de 2009

Ele era tímido, tinha um olhar sereno e sorridente. Parecia uma criança. Um pouco desajeitado, de estatura baixa e magro. Quando entrara naquela loja olhava-o sempre com um sorriso. Sorria sempre. Nunca houve um dia em que o seu sorriso não o contagiasse. Haviam dias em que contava uma anedota, pagava os discos e ia-se embora, despedindo-se sempre com um sorriso. As visitas eram diárias assim como os sorrisos e a compra de discos.
Chamava-se David. Tinha a mesma idade, era estudante de letras na Universidade da cidade. Tinha vindo de muito longe e não queria sair dali. Planeava a sua carreira profissional no local. A cidade, tal como ele dizia era demasiado reveladora, demasiado encantadora para a abandonar e voltar para um local onde as possibilidades de ser feliz eram reduzidas a meia dúzia de casas, uma família ausente, e à ignorância.
Os tempos quentes haviam chegado e com eles as férias. Estava de férias, porque tinha direito a elas, porque se havia esforçado durante todo o ano. Tinha sido aumentado, pela prestação de um serviço de qualidade. A sua eficiência e competência haviam convencido o seu patrão, dando-lhe direito mais tarde, a uma reformulação das suas competências dentro daquela pequena loja de música.
Nesse ano, as suas primeiras férias foram passadas na cidade. Deslocou-se à praia, mas acabara por desistir. As noites eram sempre passadas ao pé de amigos que tal como ele dispunham dos mesmos gostos musicais. Ficava sempre a dormir até tarde.
Hoje com 36 anos de idade, ainda sente o cheiro a tabaco que ficara na roupa depois de uma noite bem passada. O poder desinibidor que o álcool tinha, fazia dele um comunicador nato, e muitas das vezes fazia-o subir para as colunas de algumas danceterias por onde havia passado. As ressacas, as lágrimas, as noites mal dormidas e as paixões pujantes que sentia, faziam parte da sua juventude, faziam parte daquela cidade.
Mas tudo passara. Todo o sentimento tido até então haveria de passar e dissipar-se de uma forma ordeira e sem provocar grandes danos. O tempo haveria de se encarregar de o ensinar a tê-lo como único e igual a todos os outros.
Conhecia-os de há muito, ouvira falar neles desde pequeno, mas as músicas que conhecera não eram suficientes para lhe darem volta à cabeça e passarem a ser a coisa mais fantástica que conhecera nos últimos tempo.
Foi numa tarde horrível sem grande coisa para fazer, que ele havia tido a oportunidade de os conhecer. Chamavam-se Beatles, conhecia uma ou outra música. Eram uma espécie de o melhor de, tendo o vinil duas versões: uma delas azul e a outra vermelha. Recorda vivamente as maçãs que se apresentavam inteiras nos lados A e as metades das mesmas no lado B. foi aprendendo a gostar desses discos, foi aprendendo a ouvi-las e a perceber o seu poder esfuziante.