quarta-feira, 26 de março de 2008



Aprendeu muita coisa na cidade onde nasceu. Foi lá que passou os melhores e os piores momentos da sua vida…Talvez regressar lá, mesmo que em pensamento, não fosse uma boa ideia. A sua vida estava virada do avesso, e ingressar agora numa viagem por caminhos sinuosos não seria a melhor das ideias… Já havia muito que tinha arrumado as malas do passado. Malas enormes, antigas, carregadas de recordações de uma vida… no entanto, não as tinha trancado, o seu passado era o seu porto seguro, era a certeza que em tempos as coisas tinham fluido bem, e os contratempos não passavam de pequenas curvas no caminho. Agora, cada novo contratempo assemelhava-se a um obstáculo intransponível, e mesmo olhando por cima desse obstáculo não havia nenhum caminho à vista por onde pudesse seguir.
Não se lembrava da altura em que tinha entrado neste caminho … o álcool tornou-se um aliado na luta pelo esquecimento, mas um inimigo na procura de soluções.
A sua vida estava completamente vazia: já não tinha contacto com os seus amigos, não se lembrava da última vez que tinha visto a família e já nem colegas de trabalho tinha. A solidão tinha tomado conta do seu quotidiano. O emprego perdido foi o início da decadência. Já nem se lembrava do que tinha corrido mal, não sabia onde tinha falhado, só sabia que tinha deitado fora uma vida.
Quando voltou a si a noite já tinha caído por completo pela cidade. A luz dos raios de sol, tinha sido substituída pelos candeeiros espalhados pela cidade, fazendo com que esta ganhasse um novo colorido. As luzes espalhadas reflectiam coisas diferentes das que se viam durante o dia, nada era igual quando caía a noite.
Pagou a conta e seguiu o caminho de casa. Voltava para o seu refúgio onde não tinha ninguém à sua espera…Enquanto caminhava lembrou-se da estranha carta que tinha recebido pela manhã. Sem saber porquê acelerou o passo, de repente tinha uma enorme pressa em chegar a casa.

quarta-feira, 19 de março de 2008



Passou os olhos pelas páginas já usadas do jornal, leu com atenção as notícias com mais notoriedade e deixou para trás as outras. Sempre o mesmo e pelas mesmas razões. Pediu outra bebida, e outra até se aperceber que a agitação da rua se havia esvaecido. O sol gritava a sua derrota, mas antes da sua morte, e depois de ter pago, levantou-se. Foi descendo a rua. Pensou como era cáustica a vida de quem se sujeitava a levantar-se sempre à mesma hora, fazer quase sempre as mesmas coisas, no mesmo local. Os estabelecimentos comercias iam-se agora fechando, mulheres e homens fechavam a sete chaves as suas portas, fechavam a sete chaves os locais responsáveis pelo seu sustento e dos seus filhos. O trabalho só fazia sentido quando era feito com gosto, e se se levantar à mesma hora e trocar produtos por dinheiro os faziam felizes, porque não? Mas a cidade, essa, não parava, não fechava portas nem as abria, deixava que quem nela vivesse pudesse ter a liberdade de escolher, pudesse fazer dela o que quisesse. A cidade, era uma espécie de suporte que abraçava a vida que cada um escolhia.

Logo em frente um pobre desgraçado. Deitado no chão, mendigava uns trocos para se poder alimentar. Uma estranha alma do lado oposto, pedindo pelo mesmo motivo, e acolá um outro a dormir, ou morto numa escada... O fim da rua anunciava o seu fim, o rio já se avistava com todo o seu fulgor. Sentou-se numa das muitas esplanadas que se estendiam junto ao rio e, pedindo outra bebida, deixou-se vitimar pelas recordações da sua infância.

Nas pálidas manhãs de Inverno, Ratury, parecia ainda mais distante e sumida na imensidão do acaso, onde ninguém se lembra de ir, nem que fosse só pelas lindas cascatas que dispunha para todos. Era uma cidade tão fria, que regelava o espírito de quem lá passasse. As casas eram geralmente espaçadas e de adornos únicos e originais, abraçadas por logradouros imponentes e bem trabalhados. Mais longe, e já fora dos limites dos edifícios, os quintais granjeados com cuidado e com alento, eram responsáveis pelos comentários mais sórdidos ou pelos comentários mais felizes. Aquele que tivesse as melhores colheitas, segundo alguns, era aquele que teria então dado mais de si à quintarola. Deus ajudava quem se esforçasse, Deus ajudava quem melhor se dedicasse ao trabalho. Enquanto dava outro gole na sua bebida, contemplava agora um grupo de pessoas que se deslocavam sem pressas, devagar, iam percorrendo a calçada junto ao rio, uns de mãos dadas, outros abraçados. Todos falavam entre si, eram amigos e estavam felizes, iam na direcção certa, iam, sem dúvida... Quando pediu a sua segunda bebida, voltou novamente a Ratury, voltou novamente à cidade onde aprendeu a ler e a escrever, voltou à cidade que o ensinou que, nem sempre, quem nos acolhe durante a nossa ingenuidade, nos abre os braços quando mais precisamos.


Ao olhar para o envelope vieram-lhe à memória pensamentos anteriores:- “Será que o destino existe mesmo, e acabou de me escrever? Será que neste envelope está o próximo capítulo da minha vida?”A sucessão de desgraças que agora pautavam a sua existência fez com que este pensamento fosse ganhando forma e força.Continuava a segurar o envelope sem conseguir decidir o que fazer com ele, era uma luta entre o medo e a curiosidade. A letra tinha um cunho feminino, seria uma fã a reclamar do seu repentino desaparecimento da vida activa?Serviu-se de mais uma bebida e começou a pensar nos pensamentos ridículos que acabara de ter. Nunca fora pessoa de acreditar numa existência predestinada e menos ainda, num destino que usava os correios para enviar as cenas do próximo episódio. Pousou um copo, pegou no casaco e saiu de casa decidido a aproveitar o que restava da manhã, deixando o envelope esquecido em cima da mesa. A agitação das ruas, as correrias e a pressa de estar a horas no emprego, contrastavam com a calma em que se transformara a sua vida. Comprou o jornal e sentou-se numa esplanada a aproveitar o calor dos últimos dias de verão e a reflectir no rumo que teria que dar à sua vida.


E tudo parecia ter acabado. Uma espécie de nuvem assolava-lhe a mente inquieta, uma nuvem de sofrimento, de mau estar, de solidão e de outras coisas horrendas que o faziam tremer de devaneio e de cólera. O fim era evidente. O refúgio tornara-se um local especial, um local onde as ásperas manhãs cheiravam ao mesmo que as noites, sem vida, sem alma, sem espírito nem corpo...A vida sem sentido apresentava-se agora de mãos dadas com líquidos que faziam arder por dentro, a bebida, era o refúgio mais confortante para ele, era o antídoto mais eficaz para apagar as mágoas mais profundas. E por momentos era bom, era tão bom poder sentir leveza no corpo e perceber que havia reencontrado o seu espírito, o amor tem fragrâncias diferentes, mas a maior parte são sempre más! Deus sabia que era o final, um final absurdo sem contrapartidas nem absolutismos, ele tinha noção do final que o esperava, de tal forma que o medo ia ganhando terreno e queimava-lhe as entranhas que faziam as correspondências lógicas entre a aceitação, o equilíbrio e a razoabilidade. Se acreditasse no destino, poder-se-ia dizer que já estava escrito em algum local o terrível e temível fim, mas não, ele não existia, e se ele não existe quem poderá escrever o nosso livro? Nós? Ainda não eram 10 da manhã, quando ele ouve alguém tocar à campainha, numa espécie de ansiedade dirige-se à porta, e uma carta é-lhe entregue pelo carteiro. O remetente era inexistente, apenas o nome dele, a preto com letras redondas.